Onde estão os profissionais de saúde capacitados em fitoterapia e plantas medicinais?
José Francisco Correia Jr.
Farmacêutico, Mestre em Ciências Farmacêuticas,
Terapeuta Ayurvédico,
Especialista em Educação Profissionalizante
Soubemos há poucos dias de uma tragédia ocorrida com uma pessoa que consumiu um produto à base de plantas, com alegação de propriedades emagrecedoras, e teve falência hepática, vindo a necessitar de transplante de fígado e, por rejeição do órgão, foi a óbito (1).
A notícia tomou conta da imprensa e de diversos podcasts, lives e aulas remotas, discutindo a segurança (ou insegurança) dos fitoterápicos, em especial, aqueles em formulações. E nós não poderíamos deixar de opinar neste assunto, por tanto que gostamos e atuamos no ambiente das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, especialmente no que se refere às plantas medicinais e fitoterápicos.
De cara, é importante deixar claro que a vítima não usou um fitoterápico. Ao rigor da lei, fitoterápico é um produto farmacêutico feito com plantas medicinais ou seus extratos, com propriedades terapêuticas, devidamente registrado pela ANVISA (2). A Agência, de pronto, se manifestou dizendo que o tal “chá 50 ervas emagrecedor” estava sem registro desde 2020, quando foi cancelada sua autorização de fabricação e comercialização (3). Logo, aquilo não é fitoterápico. E quem estava comercializando, seja loja física ou pela internet, estava cometendo um crime contra a saúde pública. Caso de polícia!
Outro ponto importante: a composição descreve 50 plantas medicinais (sabe-se lá se realmente estão presentes no produto), porém em concentrações não especificadas no rótulo. Sabe-se que a cápsula contém 500mg e, se dividirmos isso por 50, teremos 10mg para cada planta. Essa concentração é, quase sempre, irrisória, insuficiente para efeito terapêutico ou tóxico das plantas, com algumas poucas exceções.
Ouvimos alguns profissionais de saúde, principalmente médicos, alertando sobre o perigo de se consumir esses produtos sem a orientação ou prescrição médica. Precisamos fazer um adendo: sem a orientação de um profissional de saúde devidamente formado com os conhecimentos da fitoterapia.
Aliás, um profissional de saúde, médico, farmacêutico, nutricionista, enfermeiro, realmente conhecedor de fitoterapia não prescreveria uma fórmula com aquelas características, com tantas plantas, sem o devido sinergismo entre elas, sem o necessário balanceamento das ações. E, principalmente, por não haver necessidade.
É importante destacar que as formulações de plantas medicinais existem nas medicinas tradicionais orientais há muito tempo, séculos ou milênios até, quando falamos de MTC e Ayurveda (4, 5). É possível, sim, encontrarmos formulações com essa quantidade de plantas (às vezes com outras substâncias também) sendo prescritas por médicos chineses ou indianos tradicionais, para alguns pacientes. Entretanto, tais formulações carregam o peso da tradição, o conhecimento acumulado de gerações, sendo testadas milhões de vezes ao longo da história (5). Não são fruto de um delírio ou irresponsabilidade de quem acha que pode usar plantas de forma desenfreada, porque “se é natural, não vai fazer mal”.
As formulações com múltiplas ervas das medicinas tradicionais orientais são indicadas para casos e pacientes específicos. E prescritas por especialistas, com anos de vivência. Quando utilizamos algumas das fórmulas da MTC ou do Ayurveda, estamos nos embasando na tradição das gerações, como já mencionamos. Mesmo essas fórmulas, se usadas de forma equivocada, trazem danos sérios ao paciente.
E quanto à toxicidade das plantas? O chá 50 ervas contém ervas hepatotóxicas mesmo? A resposta é SIM e NÃO!
Vamos exemplificar usando uma droga sintética, o paracetamol, que é sabidamente uma substância capaz de causar hepatite tóxica, através de seu metabólito NAPQI (6). Então, por que continuamos a usar essa droga em tantas pessoas, inclusive idosos, gestantes, crianças? A resposta é simples: a dose utilizada. São usadas doses de segurança. Ninguém consome 4 gramas de paracetamol, exceto por acidente ou atentando contra a vida. Podemos dar exemplos diversos, como a dipirona, o ácido acetilsalicílico, a ivermectina... concentração e tempo de uso fazem diferença, seja com drogas sintéticas, seja com extratos vegetais. E vamos somar a isso as condições do paciente. Não damos ácido acetilsalicílico a alguém com plaquetopenia por razões óbvias: o paciente pode ter hemorragia grave e até morrer!
Isso posto, vamos comentar a questão da planta Camellia sinensis, conhecida como chá verde, declarada no rótulo do produto que levou ao óbito a paciente citada no início deste texto. Trata-se de uma das plantas de maior capacidade antioxidante que se dispõe na fitoterapia. A presença de compostos fenólicos (flavonoides, catequinas) indiscutivelmente promove benefícios cardiovasculares e anti-inflamatórias, entre outros diversos (7, 8).
O artigo intitulado Hepatotoxicidade por chás, do Prof AÉCIO FLÁVIO MEIRELLES DE SOUZA, publicado em 2011, na revista GED, da Sociedade Brasileira de Hepatologia, apontava estudos com infusões de diversas plantas com potencial e evidência de hepatotoxicidade. Entre elas a Camellia sinensis. Porém, destacava que os casos de danos relatados na literatura foram de baixa incidência (34 casos em 10 anos). E que a forma de preparo da planta interfere na toxicidade: a infusão com água é praticamente atóxica e a preparação com extratos alcoólicos é mais tóxica (9).
Supondo que a concentração de Camellia sinensis presente no Chá 50 Ervas Emagrecedor fosse de 10mg, isso seria insuficiente para qualquer efeito. Mesmo o paciente usando 4 cápsulas ao dia, conforme recomenda o rótulo. As concentrações de uso do extrato de Camellia sinensis variam de 250 a 500mg, por dose, chegando a 1000mg /dia, com segurança, segundo referências de diversos produtores do extrato para o mercado farmacêutico (10).
Outras plantas poderiam ser responsáveis pelo efeito tóxico ao fígado? Sim, poderiam! Várias podem ser. Mas, novamente, depende de sua concentração e seu tempo de uso. Além da condição do paciente. E a soma das várias plantas poderia ter aumentado, sinergicamente, o dano ao fígado. Minimamente, é possível afirmar que o fígado tem muito trabalho para metabolizar tantas substâncias como as que estão presentes no produto citado. E nem podemos descartar a possibilidade de que o tal emagrecedor contenha outras substâncias sintéticas, como hormônios tireoidianos ou inibidores de apetite. Isso já foi constatado em outras formulações de produtos emagrecedores, em outros momentos (11).
O que nos traz de lição esse caso? A responsabilidade que temos, como profissionais de saúde, para com nossos pacientes, pois também somos educadores em saúde. É imperativo que o uso de fitoterápicos e de plantas medicinais seja orientado por profissional habilitado. Assim como a prescrição dietética é seara do nutricionista, a prescrição de calmantes e antidepressivos deve ser feita por médico psiquiatra, e a reabilitação física deve ser conduzida por fisioterapeuta, devemos entender que a fitoterapia e as demais práticas integrativas são conhecimentos científicos que só podem ser dominados por quem os estuda, quem neles se especializa.
O consumo de medicamentos, sintéticos ou naturais, no Brasil, é alarmante. E em grande parte, feito sem prescrição, sem orientação alguma (12). Urgente a atuação de farmacêuticos neste cenário, posto que nas farmácias se adquirem os medicamentos, incluindo os fitoterápicos. Urgente a ação de todos os profissionais para educar a população. Do contrário, ainda saberemos de muitos outros casos de falência hepática, renal, PCR e AVE, devido ao uso
Referências Consultadas
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